No suco: surto por transmissão oral de doença de Chagas provoca alerta em Jacobina

Família tomou bebida que continha o barbeiro triturado. Especialistas dizem que situação foi acidental, mas é preciso prevenir.

Em casa, quase todos gostavam de suco de acerola. Assim, as frutas foram coletadas direto de uma árvore que ficava no quintal, perto de um galinheiro. Uma pessoa da família bateu o suco e serviu. Todos beberam – com exceção de um dos membros do grupo, que não era muito fã de acerola. Daqui em diante, a sequência de acontecimentos foi inesperada: no início, os sintomas como febre e dor pouco diziam. Mas a persistência do quadro veio com o diagnóstico de doença de Chagas.

O caso aconteceu em Jacobina, no Centro-Norte baiano, no primeiro semestre deste ano, e foi considerado pelas autoridades de saúde como um surto de transmissão oral da doença. Ao todo, cinco pessoas da mesma família foram infectadas. Entre elas, uma adolescente morreu. O surto chamou atenção para uma transmissão nem sempre lembrada por parte da população – através dos alimentos.

“Existe, hoje, no Brasil, risco de transmissão de doença de Chagas via oral. Se fala muito em açaí, caldo de cana. Tudo isso é possível, quando se tem, ali próximo, o barbeiro. No momento em que ele é triturado com o alimento, ele pode triturar junto o Trypanosoma cruzi”, explica o professor Artur Dias Lima, doutor em Biologia Parasitária, docente de ecologia médica da Universidade do Estado da Bahia (Uneb) e professor da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, referindo-se ao protozoário que é o agente etiológico da doença.

Em Jacobina, quando as equipes de saúde tentaram rastrear como a transmissão tinha acontecido, a resposta pareceu ter vindo do galinheiro. “Lá onde tinha um pezinho de acerola, tinha também um galinheiro com barbeiros. Tudo indica que quando levaram essas acerolas para fazer um suco, o barbeiro foi junto”, acrescenta Lima. por Artur Dias Lima, professor da Uneb e da Bahiana

“Lá onde tinha um pezinho de acerola, tinha também um galinheiro com barbeiros. Tudo indica que quando levaram essas acerolas para fazer um suco, o barbeiro foi junto” por Artur Dias Lima, professor da Uneb e da Bahiana

Não é como se o barbeiro estivesse se alimentando das acerolas, portanto, até por ser um inseto hematófago – ou seja, que se alimenta de sangue. No entanto, não é incomum que eles sejam encontrados em locais como galinheiros para se alimentar dos animais que vivem lá.

Em maio, a Secretaria da Saúde do Estado (Sesab) chegou a emitir um alerta em que orientava que as secretarias municipais intensificassem a vigilância epidemiológica em função dos casos em Jacobina. No documento, o órgão ressalta o “aumento do risco de transmissão da doença de Chagas (DC) e ocorrência de casos da doença no Estado da Bahia”.

Através da assessoria, a secretaria reforçou que a Bahia não registra surto da doença atualmente. Segundo a Sesab, até o dia 6 de maio, seis dos oito casos notificados no estado este ano foram confirmados. Dentre eles, havia quatro homens e duas mulheres, sendo que a faixa etária foi de 12 a 53 anos. Além dos cinco confirmados em Jacobina, houve outro caso em Cansanção, com transmissão vetorial – através da picada do barbeiro.

Fauna

Ainda que pareça um novo cenário, a transmissão oral sempre existiu, como destaca o médico veterinário André Luís Roque, pesquisador do Laboratório de Biologia de Tripanosomatídeos do Instituto Oswaldo Cruz e coordenador do programa de pós-graduação em Biologia Parasitária da Fiocruz. O que acontece é que, por muito tempo, as atenções pareciam estar voltadas apenas ao cenário clássico da infecção pela picada do barbeiro.

Uma das possibilidades de transmissão mais lembradas é a do açaí, mais comum na região Norte. Em 2021, dos 320 casos confirmados no Brasil, 241 foram no Pará e 51 no Amapá, de acordo com o Datasus. No mesmo ano, a Bahia teve três ocorrências.

O caldo de cana também é frequentemente citado, especialmente após um surto em Santa Catarina, em 2005. Em nenhum dos casos, porém, o barbeiro estava na palmeira do açaí ou nos canaviais. “O caso da acerola é uma novidade, embora, na Venezuela, já tenha sido descrito através de goiaba”, cita Roque.

Ter um galinheiro perto da casa pode facilitar a presença de barbeiros porque pode fazer aumentar a população dos insetos na área. “Até onde a gente sabe, a galinha não hospeda o parasita e, quando a gente fala de contaminação, é por um barbeiro infectado pelo parasita. Se a picada for por um barbeiro não infectado, não tem nada”, pondera.

O percentual de insetos infectados em uma comunidade vai depender da área. Mesmo assim, os galinheiros também não são os locais com maior propensão a atraí-los. Segundo o pesquisador, o mais comum é que haja taxas de infestação maiores em colônias em áreas rochosas ou de caatinga.

“Isso também depende da fauna de mamíferos que tem no local. Quando você começa a destruir o ambiente, esses insetos acabam tendo sua fonte de alimento diminuída e vão se aproximando mais do homem. Se você destrói tudo e só tem o galinheiro, eles podem recorrer ao galinheiro”, acrescenta.

Acidental

Mas o surto em Jacobina, na avaliação do pesquisador Fred Luciano Neves, da Fiocruz Bahia, tem características diferentes da transmissão oral como costuma acontecer com o açaí na região Norte do país, especialmente em cidades do Pará e do Amapá.

A contaminação normalmente ocorre após a colheita, quando o açaí é colocado nos cestos. “O barbeiro é atraído para os cestos porque quer se proteger da luz. Ele se enfia entre os frutos e durante a moagem do açaí, o pessoal vira o cesto na máquina e não vê que tem barbeiro. O barbeiro é triturado junto do açaí”, explica ele, que é doutor em Biociências e Biotecnologia em Saúde.

Na Fiocruz, ele foi um dos responsáveis por um estudo que avaliou a distribuição de casos agudos da doença de Chagas no Brasil. O que a pesquisa indicou foi uma mudança de perfil epidemiológico nos últimos anos. Segundo o professor, houve um declínio das ocorrências por transmissão vetorial da doença, principalmente nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, nos últimos anos. E, em seguida, uma concentração dos casos por infecção oral especificamente no Norte.

“Qual é a diferença do Norte para o Nordeste? Ou então para aquele surto de Doença de Chagas por caldo de cana, em 2005, em Santa Catarina? Aqui na Bahia, foi um suco que a família tomou e as pessoas acabaram se infectando. Esse tipo de infecção não é comum, é rara, é acidental”, enfatiza.

Enquanto no Norte, a transmissão oral é mais usual pelo comportamento do barbeiro procurar o açaí para se esconder, por ser um fruto escuro, no Nordeste, são situações pontuais. “Se houvesse uma inspeção do alimento antes de prepará-lo, a gente podia evitar essas infecções acidentais. Mas esses surtos sempre vão existir. Vira e mexe vai ter alguém que vai preparar o alimento com barbeiro dentro. É o local preferido para o barbeiro estar? Não, mas ele pode estar e ser triturado junto”.

Por isso, não é impossível que um novo surto de transmissão oral aconteça em Jacobina novamente. No entanto, ele reitera que, assim como pode se repetir lá, pode acontecer em outras cidades pelo aspecto acidental.

Uma consequência dos surtos acidentais é que, por vezes, as equipes de saúde que atendem os pacientes infectados demoram a suspeitar da doença de Chagas. Ela é, inclusive, uma patologia conhecida por ser silenciosa. Ainda segundo o pesquisador, foi isso que aconteceu na Bahia, quando uma das pessoas da família morreu, já que a doença não é comum na região.

“Quando o indivíduo se infecta, ele tem algumas sintomatologias relacionadas à fase aguda da doença que são inespecíficas. Qual é a doença que não tem uma febre, um linfonodo, uma mialgia? Essa falta de suspeição levou ao retardo do diagnóstico dos pacientes e um deles acabou evoluindo para óbito”, diz ele, que defende mais treinamento das equipes de saúde, assim como mais tempo para discutir a doença nas grades das faculdades. “A cada dia que passa Chagas é menos discutida e os alunos não têm oportunidade de lidar com pacientes portadores”, acrescenta.

Fases

Além disso, a maioria dos casos da doença de Chagas são assintomáticos, de acordo com o professor Artur Dias Lima, da Uneb e da Escola Bahiana de Medicina. Por isso, ele não duvida que outros casos semelhantes ao surto de Jacobina possam ter acontecido – ou estarem acontecendo – e nunca serem diagnosticados.

Isso porque a doença de Chagas tem duas fases – a aguda e a crônica. Se a pessoa descobre ainda na fase aguda, é possível fazer o tratamento no Sistema Único de Saúde (SUS) e evitar formas mais graves, que podem aparecer anos depois. Mas, por vezes, os sintomas só aparecem na fase crônica.

“Aqui na Bahia, na literatura (científica), já foram descritos casos de transmissão em que o barbeiro defecou dentro de um pouco de água. O que acontece é que o poder público não tem como estar na casa de cada pessoa fazendo esse tipo de vigilância. Mas toda vez que algo assim vem à tona, se chama atenção para que as pessoas se preocupem com a higienização de suas casas, para não ter a presença de barbeiros”, afirma.

A Bahia tem, hoje, ao menos 28 espécies de barbeiro, sendo que todas as espécies existentes podem transmitir a doença de Chagas. Em todo o mundo, são pelo menos 156 espécies de barbeiro conhecidas, sendo que 66 estão em território nacional. Eles estão presentes em todos os municípios da Bahia. Em Salvador, é possível destacar bairros como Alphaville.

Se alguém encontrar um barbeiro em casa, a orientação é tentar capturá-lo, se for possível, mas sem ter contato direto com as mãos. Em seguida, o inseto deve ser encaminhado à Sesab através das diretorias regionais.

“As pessoas especialistas vão ver se o barbeiro está positivo para Trypanosoma cruzi. Se sim, as equipes vão na casa da pessoa borrifar (um inseticida), assim como nas casas vizinhas. Eles serão encaminhados para ver de que espécie se trata e, se por acaso tiver a suspeita de que ele sugou, as pessoas também serão examinadas através de teste sorológico”, explica Lima.

Em geral, as picadas do barbeiro podem acontecer à noite. No entanto, como a saliva dele é anestésica, muitas vezes a pessoa nem sabe que foi picada. O que pode acontecer, porém, é uma sensação de coceira. Depois de sugar o sangue, o inseto pode defecar na pele e, quando a pessoa coça, pode arrastar as fezes do barbeiro para o local da picada, o que provoca a infecção.

“Tem que ter cuidado tanto com o barbeiro adulto quanto com as ninfas. Essa infecção em Jacobina provavelmente aconteceu com ninfas”, pondera o professor, citando o estado mais juvenil do inseto, antes de atingir a fase adulta. Enquanto um barbeiro com desenvolvimento completo pode chegar ao tamanho de uma barata, em algumas espécies, as ninfas podem ter o tamanho de uma formiga.

Mesmo com a dificuldade de diagnóstico, a médica cardiologista Lucélia Magalhães, professora da Medicina FTC e da Unesul Bahia, ressalta que o primeiro passo é suspeitar. Se um paciente tem febre por mais de sete dias, apresenta gânglios aumentados e muita prostração – cansaço excessivo -, e estiver em uma região de mata, é preciso considerar a possibilidade.

“Se a pessoa tiver ingerido açaí, que na Bahia inteira passou a fazer parte da nossa cultura, tem que suspeitar. Pode fazer um teste de Igm (anticorpos) para doença de Chagas e tratar com benznidazol”, diz.

O tratamento dura 60 dias e os comprimidos precisam ser tomados três vezes ao dia. “Quanto mais cedo se tratar, mais efetivamente é possível curar totalmente, tirar (o parasita) totalmente do sangue e dos tecidos. Mas o diagnóstico não é fácil, porque tem muitos sintomas parecidos com dengue, covid e outras doenças”.

Já na fase crônica o parasita já não está mais no corpo da pessoa. Apesar de terem saído de circulação, eles deixam cicatrizes, porque provocam reações nos tecidos. “Podem deixar reações no intestino, criando o megacólon, com o intestino grande, ou o megaesôfago. Mas o órgão mais comumente acometido é o coração, que fica grande. A cardiopatia não tem cura, então você tem que tratar a insuficiência cardíaca”, completa a médica.

Transmissão oral pode ser evitada com cuidados básicos no preparo de alimentos

Apesar do alerta epidemiológico para a transmissão oral da doença de Chagas, pesquisadores e profissionais de saúde reforçam que não há motivo de pânico no consumo de frutas e alimentos à base delas.

O pesquisador André Luís Roque, do Instituto Oswaldo Cruz, reforça que é preciso investir em educação para prevenção. “A população que está num local tem que ser educada no sentido de conhecer as formas de infecção e saber como evitar. É importante o papel da vigilância do município não só no sentido de fiscalizar, mas de orientar sobre o manuseio dos alimentos”, diz.

No caso de frutas coletadas em casa ou em áreas próximas, como aconteceu em Jacobina, vale a orientação para desinfecção desses alimentos em geral. É possível fazer uma lavagem e deixar as frutas de molho em uma solução com água sanitária. Se algum barbeiro estiver ali, ele deve ser eliminado.

Já para alimentos comprados de forma industrializada, os processos da própria cadeia de comercialização devem garantir que esse tipo de situação não aconteça. Quem compra uma polpa de fruta no mercado, por exemplo, estaria seguro.

“À medida que o alimento entra na cadeia de produção, muitas vezes ele é congelado e pasteurizado. Existem até trabalhos que mostram que é possível detectar o DNA do parasita, mas ele não é mais viável”, completa o professor.

Isso também inclui o açaí comprado após passar por um processo conhecido como branqueamento, que significa aquecer os frutos por alguns segundos a 90ºC antes da preparação.

“Com o açaí, mesmo se o barbeiro for triturado ali, o protozoário é morto por essas técnicas. Em relação à gente cá, que tem os surtos esporádicos, acidentais, é a lavagem dos alimentos, inspeção, ter cuidado ao armazenar os alimentos para que o inseto não tenha acesso a eles”, afirma o pesquisador Fred Luciano, da Fiocruz Bahia.

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