Na carta, o coletivo informou que em um local que recebe mais de 300 mil turistas por ano, há pouco policiamento .
Moradores da Ilha de Tinharé, que compreende localidades como Morro de São Paulo e Gamboa, denunciaram nas redes sociais a situação precária do sistema de saúde na região e o transporte clandestino de turistas em meio a pandemia do novo coronavírus. Através das redes sociais, o grupo Mulheres do Morro divulgou um documento expondo a situação na região.
Na carta, o coletivo informou que em um local que recebe mais de 300 mil turistas por ano, há pouco policiamento e somente “um posto médico 24 horas com equipamentos básicos e precários” que não atende a “demanda interna e externa da ilha, na temporada ou fora dela”.
“Não não há hospitais, não há corpo de bombeiros, os cemitérios são subutilizados. Temos lixões a céu aberto com mais de 20 anos que contaminam os lençóis freáticos, sistemas de esgotamento sanitário inexistentes ou defasados, com ocorrências de despejos in natura nos mares e cursos d’água”, informaram.
No documento, o grupo Mulheres do Morro também fez um apelo sobre graves consequências em relação a uma possível disseminação do vírus na ilha e posterior fechamento do acesso ao local. Além disso, denunciaram que há transporte clandestino de turistas no momento da pandemia e superlotação em embarcações autorizadas.
“Todos os dias chegam novos turistas, veranistas e moradores que migraram para o continente com suas famílias e que, agora durante o período da quarentena, chegam à Tinharé pelas Segunda, Terceira e Quarta Praias do Morro e pela Gamboa, nas madrugadas e fora delas, em barcos fretados e até helicóptero. […] Em operações autorizadas pelos municípios, embarcações estão superlotando a capacidade diária de passageiros de Valença para o Morro de São Paulo e para a Gamboa, expondo os moradores que se sacrificam por horas nas filas para obtenção das suas permissões de viagem ao continente” diz o trecho do documento.
Confira o documento na íntegra:
“Somos Mulheres do Morro. Hoje é dia 8 de abril de 2020. Este documento versa sobre nosso medo e necessidade de proteger nossas comunidades, assim como de denunciar a banalização das medidas de isolamento social da Ilha de Tinharé – particularmente, nos logradouros do Morro de São Paulo e da Gamboa – pela própria população da Ilha, fora do controle dos agentes públicos.
É preciso levar em consideração que encaramos, corajosamente, a guerra real contra um inimigo invisível, mutante e desconhecido que, neste exato momento em que nossa mensagem é lida, deixa mortos por todos os continentes, numa curva crescente, inclusive na Bahia. Números estão subnotificados porque, já sabemos, não há testes suficientes para a população brasileira, nem mesmo no nosso estado, um dos mais ricos em insumos para o enfrentamento da Covid-19.
Aqui, ainda, somos um microcosmo: um arquipélago com extensão de 451 km² e cerca de 18 mil habitantes. Recebemos mais de 300 mil pessoas de toda parte do mundo por ano, num sistema turístico que se encontra além da capacidade de suporte da sua infraestrutura e explotação dos seus ambientes naturais: são apenas uns poucos policiais militares e civis, 1 posto médico 24h com equipamentos básicos e precários – pequeno demais para suprir a demanda interna e externa à Ilha – na temporada ou fora dela. Não não há hospitais, não há corpo de bombeiros, os cemitérios são subutilizados. Temos lixões a céu aberto com mais de 20 anos que contaminam os lençóis freáticos, sistemas de esgotamento sanitário inexistentes ou defasados, com ocorrências de despejos in natura nos mares e cursos d’água. Uma população leiga, na sua grande maioria é profundamente desigual. O 4º maior PIB da Bahia, onde 45,4% da população tem renda per capita inferior a 1/2 salário mínimo. Nós não temos condição de sobreviver a uma contaminação massiva de coronavírus.
Seja acerca do crescimento urbano desordenado, com prejuízos dos nossos recursos ecossistêmicos, danos imensos e irreparáveis às nossas matas, praias, corais, manguezais; aos nossos ricos e abundantes recursos hídricos; seja pela precarização da nossa infraestrutura, nosso sistema de saneamento; nossa medicina sanitária; seja perante o reconhecimento de que nossa microeconomia movimenta a macroeconomia regional – nosso braço econômico abrange parte dos Territórios do Baixo Sul e do Recôncavo – onde absolutamente tudo o que é consumido nas principais ilhas da Cidade-Arquipélago é trazido por terra e/ou rios e mar: todos os insumos vêm das várias cidades vizinhas no continente: Precisamos acordar!
Se o Turismo do Morro de São Paulo, Gamboa e dos logradouros de Cairu não resistir, o reflexo será sentido cultural, social, econômica e politicamente pela Bahia.
Nós, mulheres do Morro, apelamos: se o vírus se espalhar entre nós, não resta dúvida, as Ilhas se fecharão e o “paraíso” se tornará uma Alcatraz. Morrermos sem apoio, num campo de concentração rodeado por lindos mares azuis: que nossos governantes e equipes saibam que o gás desta câmara terá sido aberto pelas mãos dos alienados, mas também dos que não agiram quando tiveram poder e tempo para tal. E o forte cheiro das suas ações afetará e será lembrado, não apenas no estado da Bahia, mas muito além de suas fronteiras, registrado pela história.
Assinam: Mulheres do Morro
Todos os dias chegam novos turistas, veranistas e moradores que migraram para o continente com suas famílias e que, agora durante o período da quarentena, chegam à Tinharé pelas Segunda, Terceira e Quarta Praias do Morro e pela Gamboa, nas madrugadas e fora delas, em barcos fretados e até helicóptero (!), que não estão respeitando as determinações das Prefeituras de Cairu e de Valença, e do Governo do Estado. Embarcações e veículos estão operando na clandestinidade entre Cairu – Valença e Salvador, pela BR-101 e pela BA-001.
Fora da clandestinidade, em operações autorizadas pelos municípios, embarcações estão superlotando a capacidade diária de passageiros de Valença para o Morro de São Paulo e para a Gamboa, expondo os moradores que se sacrificam por horas nas filas para obtenção das suas permissões de viagem ao continente. Esses operadores burlam o manifesto das próprias embarcações e sequer realizam controle mínimo da procedência dos passageiros que transportam para nossos pequenos logradouros. A opção dos moradores que reclamam da superlotação e dos passageiros estranhos à lista de controle é descer do barco e permanecer em Valença ou fretar um transporte não autorizado, o que pode custar de centenas a milhares de reais.
Meios de hospedagem, proprietários de imóveis e imobiliárias vendem diárias e alugam por temporada, como se fôssemos simplesmente abençoados pelo sol e pelo sal, incólumes à pandemia que assola o planeta.
Entretanto, o risco para um configura risco para todos. Às pessoas alheias à realidade ou agindo de má fé, na capitalização da miséria e da doença, são necessárias medidas mais incisivas, com poder de polícia: da difusão massiva de informações a multas às pessoas e propriedades, retenção de embarcações, detenção e outras medidas cabíveis à situação e previstas nos diversos decretos municipais.
Somos todos adultos, mas não parece: que sejamos então tratados como crianças. Que sejamos tutelados de forma mais íntegra, zelosa e maternal por parte dos responsáveis legais pela população de Cairu: este deve ser o propósito mais urgente dos nossos representantes.
Não temos certeza de que tais turistas e moradores que vêm sendo pulverizados pela Ilha de Tinharé não estejam infectados. A permissividade, a irresponsabilidade e o desconhecimento de membros das nossas comunidades e de agentes públicos poderá nos dizimar. Membros da população não deveriam precisar assumir função de olheiros e denunciadores. Mesmo porque aos angustiados que se encarregam desta terrível missão, além de não contarem com o respaldo das autoridades, não são contemplados com um seguimento das suas denúncias e ficam no ar, sem respostas, ameaçados, muitas vezes, pelos denunciados.
Nossa cidade-vizinha-parceira – Valença – não tem estrutura para nos apoiar num caso de dano sem precedentes: o hospital de campanha recentemente equipado, as UTIs recém criadas, bem como a malha funcional da área médica, não têm condições de suprir a demanda de todo seu entorno, seja para nós, ou para outras comunidades e cidades próximas. O estado da Bahia inteiro não tem condições de atender toda sua população: os quase 15 milhões de baianos só dispõem de 1.478 leitos de UTI. Pensem nisto.
Assistiremos nossos entes e amigos morrerem sem tratamento? Empilharemos nossos cadáveres? Ou os queimaremos pelas ruas a exemplo dos nossos irmãos equatorianos?
Sem mão-de-obra, sem empresas: o que acontecerá com Cairú?
Estamos preparados para matar a fome de quem restar?
Se restar.
Nós, povo que habita as ilhas de Cairu, privilegiados por tanta exuberância histórica e natural, que deveríamos ser referência no Turismo Ecológico e que, apesar de tantos problemas socioambientais, ainda somos o terceiro destino mais procurado da Bahia pelos viajantes do mundo, não estamos nos cuidando de maneira consciente e responsável”.
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BN/ Foto: Tuca Moraes / Reprodução