Candidatos à presidência vêm protagonizando disputa que envolve debates sobre religiosidade, cristianismo, maçonaria, forças ocultas e satanismo.
A tênue linha que constitucionalmente separa estado e religião no Brasil aparece borrada na corrida eleitoral pelo cargo máximo do governo nacional. Em uma semana com intensos ataques de lado a lado, uma onda de fake news e desinformação deu a tônica de quão ofensivos devem ser os dias prévios ao segundo turno da disputa pela presidência em 2022, marcado para 30 de outubro. Cada um à sua maneira, Lula (PT) e Jair Bolsonaro (PL) protagonizam uma guerra nada santa, que envolve debates sobre religiosidade, cristianismo, maçonaria, forças ocultas e satanismo.
As tensões se intensificaram há uma semana, quando a apuração das urnas no primeiro turno causava apreensão nas duas campanhas. Naquele domingo (2/10), as estratégias para o embate decisivo entre Lula e Bolsonaro começaram a ser tramadas. Uma delas, porém, já era colocada em prática nas redes bolsonaristas: propagar a falsa associação entre o ex-presidente e o satanismo. O debate de ideias para o país, então, deu lugar à cruzada pelo voto dos mais de 80% da população brasileira que se declaram cristãos.
“A religião não deveria ser tema de discussão na eleição presidencial no Brasil. Por quê? Porque isso não é um problema. O Brasil é um país que garante total liberdade religiosa, de culto: do candomblé à Assembleia de Deus. Fome, miséria, desigualdade, corrupção, saúde ruim, educação ruim… Esses são problemas e deveriam ser os assuntos em pauta”, critica o pesquisador Carlos Ranulfo, do departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
No vídeo que viralizou, um influenciador intitulado luciferiano “prevê” a vitória de Lula no primeiro turno – o que não ocorreu. Trata-se de Vicky Vanilla, que soma quase um milhão de seguidores no TikTok e se descreve como “mestre e líder da Igreja de Lúcifer do Novo Aeon”. Ele aparece em frente a uma bandeira do petista e fala sobre uma suposta união de diferentes religiões, de segmentos satanistas e do ocultismo, pelo ex-presidente.
Originalmente, o conteúdo foi publicado na última sexta-feira (30/9) e passou a ser replicado com mais fervor dois dias depois nos aplicativos de mensagem. Nomes representativos do bolsonarismo, então, entraram na batalha.
A deputada federal Carla Zambelli (PL-SP) postou o vídeo e classificou a disputa pela presidência como uma “guerra espiritual”: “É o bem contra o mal”. Em seguida, o senador eleito Cleitinho (PSC-MG) reproduziu as imagens para convocar o voto dos mais de 40 milhões de brasileiros que se abstiveram no primeiro turno.
“A impressão que tive é que é parte de uma estratégia. Bolsonaro precisa do voto evangélico para vencer. Somente por meio das intersecções “evangélico-mulheres” e “evangélicos-pessoas pobres” é que ele teria alguma possibilidade de ganhar no segundo turno”, analisou o sociólogo Alexandre Brasil Fonseca, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que em 2018 iniciou uma pesquisa sobre disseminação de fake news e desinformação em grupos evangélicos no WhatsApp.
“É a única forma, hoje, que Bolsonaro possui de acessar públicos que têm uma rejeição altíssima em relação a ele. Entre evangélicos, a rejeição é baixa, mas entre mulheres e pessoas de mais baixa renda a rejeição é alta. Então, ele precisa dessa porta de entrada, que são os evangélicos. É nesse lugar que é confortável para ele fazer a campanha”, continuou.
Internamente, a campanha de Lula sentiu o baque. Diante da rápida disseminação da fake news, a assessoria do petista se viu obrigada a se posicionar. “A verdade, como já repetimos antes, é que Lula é cristão, católico, crismado, casado e frequentador da igreja. Não existe relação entre Lula e o satanismo”, lê-se em nota. “Quem espalha isso é desonesto e abusa da boa-fé das pessoas. O vídeo circulou em muitos canais do Telegram e grupos de WhatsApp e comprova como os apoiadores de Bolsonaro abusam da boa-fé das pessoas”, completa.
Nos dias seguintes, a defensiva do petista e de apoiadores se intensificou. “Eles dizem que eu não sou cristão, veja que absurdo. Quem criou a Lei de Liberdade Religiosa fui eu, em 2003. Quem criou o Dia do Evangélico fui eu. Quem fez a Lei da Marcha por Jesus fui eu. O meu Deus é o Deus da verdade, é o Deus do amor. Não é o Deus do ódio. É o Deus do carinho, é o Deus da fraternidade”, diz Lula em vídeo que passou a ser amplamente compartilhado como resposta aos ataques.
No início da semana, o próprio Vicky Vanilla publicou um novo vídeo dizendo que o conteúdo original foi tirado de contexto e chamou o caso de “fake news”. “Recebi diversas ameaças, o bastante para fazer um boletim de ocorrência e entrar com representação judicial contra meus agressores”, iniciou.
“Está sendo espalhado como uma fake news tanto a meu respeito, quanto a respeito do candidato Lula, que não tem qualquer ligação com a nossa casa espiritual”, completou. No perfil de Vicky no TikTok, há conteúdos pró-Lula e anti-Bolsonaro. Porém, em outros momentos, o influenciador atacou veementemente o petista ao ponto de até associá-lo, erroneamente, ao nazismo.
Bolsonaro e a maçonaria
A estratégia petista de intensificar a associação entre Lula e religião prosseguiu ao longo da semana. Na terça-feira (4/10), o ex-presidente recebeu bênçãos de frades franciscanos no Dia de São Francisco de Assis. O aceno ao eleitorado religioso se deu de forma quase simultânea a um golpe, de mesmo tom, sofrido pela campanha de Bolsonaro.
Viralizou nas redes sociais um vídeo de 2017 em que o presidente discursa em um templo maçônico. No mesmo dia, foi muito divulgada uma montagem de Bolsonaro posado em frente a uma imagem de Baphomet, entidade pagã com cabeça de bode, asas e parte do corpo feminino que não faz parte do conjunto simbólico da maçonaria e, atualmente, é associado com frequência ao satanismo. A fotografia original foi tirada em 2014 e não conta com quadros na parede.
A ofensiva petista para associar Bolsonaro à maçonaria foi liderada pelo deputado federal reeleito por Minas Gerais André Janones (Avante), nome importante da campanha pró-Lula nas redes sociais. A ideia é justamente causar tremores na relação com os evangélicos, tradicionalmente fiéis seguidores do presidente.
“A quem interessa introduzir a religião na campanha? Interessa à campanha de Bolsonaro, que manipula o tema. Dizer que a campanha de Lula vai fechar igrejas é um absurdo completo. Agora, quando você envereda por esse caminho – satanismo, etc. -, alguém descobre que o Bolsonaro foi a uma cerimônia da maçonaria, que a Carla Zambelli se casou numa loja maçônica, e vai explorar isso. E você começa uma guerra. Também a maçonaria não deveria ser pauta da eleição”, pontuou Ranulfo.
Nas redes sociais, a estratégia parece ter funcionado. A palavra “maçonaria” foi o segundo termo mais pesquisado no Google no Brasil na terça, com mais de um milhão de buscas, mostra o Google Trends. Baphomet também apareceu bem ranqueado, na 16ª posição, com mais de 100 mil procuras na ferramenta. O interesse pelos temas, sempre associados a Bolsonaro, atingiu os índices mais altos dos últimos tempos. As buscas que relacionam o presidente aos termos “satanista” e “maçonaria” cresceram 5.000%.
“Fui em loja maçom, acho que foi a única vez que eu fui numa loja maçom. Eu era candidato a presidente, pouca gente sabia, e um colega falou ‘vamos lá’ e eu fui. Acho que foi aqui em Brasília. Fui muito bem recebido. Me trataram bem. Eu sou presidente de todos e ponto final. Fui de novo? Não fui. Agora, sou presidente de todos. Isso agora a esquerda faz estardalhaço. O que tenho contra maçom? Tenho nada. Se tiver alguma coisa, a gente vê como proceder. Quero apoio de todos aqui do Brasil”, relembrou Bolsonaro, em live.
O episódio gerou desconforto na cúpula bolsonarista, que respondeu com uma série de postagens nas redes sociais dos filhos e de alguns dos apoiadores mais influentes do presidente. “Quer bater? Batam e mim”, publicou Carla Zambelli, cujas fotos do casamento em uma loja maçônica, em 2020, foram recuperadas e compartilhadas. Nas imagens, também aparecem a primeira-dama Michelle Bolsonaro e o então ministro Sérgio Moro. Bolsonaro não esteve no evento por conta de uma viagem da agenda presidencial.
Houve, em sequência, uma reação de pastores evangélicos em prol de Bolsonaro.
Silas Malafaia, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, publicou seguidas vezes um vídeo em que defende a reeleição. “O presidente é presidente de todos. Ele na igreja evangélica, na igreja católica, em outras religiões ou na maçonaria, que é uma sociedade, é questão dele. Sou contra que um evangélico seja maçom. Não vão manipular os evangélicos”, disse.
Em reunião visitada por Bolsonaro nessa semana, a Assembleia de Deus apresentou resolução para punir pastores que “defendam, pratiquem ou apoiem” pautas associadas à esquerda. No mesmo dia, uma equipe da TV Globo foi atacada e expulsa de um culto na igreja: “Você está atrapalhando. Portanto, você fica à mercê de ser processado por perturbar o culto, o local divino, que é guardado pelo texto constitucional”, disse o pastor, antes de os jornalistas saírem do local sob vaias e protestos.
Entre uma postagem e outra, a guerra religiosa ganhou novos capítulos. Apoiadores de Lula recuperaram uma imagem em que a pastora e cantora gospel Ana Paula Valadão abraça a ex-presidente Dilma (PT), a quem chegou a chamar de “ministra do louvor”. Atualmente, a liderança religiosa é apoiadora de Bolsonaro e acompanhou o pai, André Valadão, abençoar o presidente e a primeira-dama em agosto deste ano, na Igreja Batista da Lagoinha, em Belo Horizonte.
A luta, de um lado e de outro, é para conquistar um percentual significativo da população brasileira. Segundo pesquisa Datafolha divulgada em 2020, 50% dos brasileiros se denominam católicos; 31% são evangélicos. “O voto evangélico é importante, mas não é decisivo. O percentual de católicos ainda é muito maior. O eleitor decisivo no Brasil é o eleitor pobre, de até dois salários mínimos, porque aí estamos falando da maioria da população brasileira”, pondera Ranulfo.
Insert – Maçonaria e igreja
De acordo com o Grande Oriente do Brasil (GOP), a maçonaria é uma instituição “essencialmente filosófica, filantrópica, educativa e progressista”. Há a exigência de reconhecer a existência do “Grande Arquiteto do Universo”, mas não é considerada uma religião. Dessa forma, não é necessário abdicar da religião para se tornar maçom.
Historicamente, a maçonaria é mal vista pela Igreja Católica. Em 1938, o papa Clemente 12º proibiu fiéis de serem integrantes das lojas maçônicas. Mais tarde, em 1985, o cardeal Joseph Ratzinger – que se tornaria o papa Bento 16 – escreveu documento que diz: ‘Fiéis que pertencem às associações maçônicas estão em estado de pecado grave e não podem aproximar-se da Sagrada Comunhão”. Depois, porém, a excomunhão aos católicos maçons deixou de ser praticada.
Entre os evangélicos no Brasil, a relação era cordial no começo. Alguns pastores, inclusive, chegaram a participar das reuniões em lojas maçônicas. Porém, ao longo do século XX, as igrejas protestantes passaram a associar a maçonaria, seus rituais e símbolos ao satanismo e ao ocultismo – especialmente no meio pentecostal. Em vídeo muito compartilhado nos últimos dias, o pastor Lucinho Barreto, da Igreja Batista da Lagoinha, diz que ser evangélico e maçom “é como ser atleticano e cruzeirense ao mesmo tempo”.
Fé e eleição*
Católicos: 50% da população brasileira
Evangélicos: 31% da população brasileira
Mais de 900 candidatos com identificação religiosa (recorde)
56% dizem que política e valores religiosos devem andar juntos
1/3 dos evangélicos considera opinião de líderes para decidir voto (maior número dentre os grupos religiosos)
Fazem parte de grupos religiosos no Whatsapp: 92% de evangélicos; 70% de católicos; menos de 50% de outras religiões.
*Dados de Datafolha (2020), Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e pesquisa Caminhos da Desinformação: Relatório de Pesquisa Evangélicos, Fake News e WhatsApp no Brasil (UFRJ)
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