Lembra do buraco de Matarandiba? Moradores querem transformar em ponto turístico

Após quatro anos, cratera em Vera Cruz ainda gera receio, mas há quem sonhe em abrir para visitação. Saiba se é possível.

Matarandiba é um paraíso perdido em Vera Cruz, Ilha de Itaparica. Lá, até o tempo parece andar sem pressa, enquanto a população vive uma rotina pacata e sem grandes novidades. Policiamento, apenas as ‘forças auxiliares’ que ficam nas janelas das respectivas casas vigiando a vida dos outros ou controlando a entrada de forasteiros. Sempre sorridentes e de conversa mansa, o semblante dos moradores locais só muda quando o assunto é o buraco que se abriu misteriosamente a poucos quilômetros do vilarejo, em 2018. Na época, a pequena vila virou notícia nacional.

“Eu pensando que você estava aqui para comprar siri na minha mão, vem falar do buraco? A turma aqui tenta esquecer, seguir a vida. Nunca mais teve nenhum estrondo, mas a turma até hoje se assusta até com fogos de São João. Na época que o buraco se abriu, todo mundo tinha medo da zorra engolir a vila inteira. Tem uma sirene instalada para avisar quando o bicho pegar novamente. Nunca tocou, mas todo mundo tem medo dela. Acho que tem medo mais da sirene do que do buraco (risos). Quando uma criança faz malcriação, a gente diz que a sirene vai tocar”, conta o pescador e morador local Roberto Rodrigues.

Depois de tanta covid, eleições e guerra na Ucrânia, pouca gente deve lembrar do buraco na localidade banhada pela Baía de Todos-os-Santos. Em 2018, o solo cedeu e uma cratera de 46 m de profundidade, 69 m de comprimento e 29 m de largura apareceu a alguns quilômetros de uma colônia de pescadores, na área de extração de sal-gema da Dow Química, que opera no local há mais de 40 anos.

Na entrada de Matarandiba, uma guarita controla a entrada e saída de pessoas. Ninguém é proibido de entrar, mas é preciso registrar a placa. Na estrada que leva até a vila, placas orientam sobre alguns perigos, incluindo o buraco. Uma trilha que levaria até a cratera está interditada e uma placa chama atenção: “Ao ouvir a sirene, não acesse esta área”, avisa.

“Quem vai lá é coelho. Todo mês a Dow tem reunião, diz que está tudo seguro, mas não me arrisco mais. Logo quando abriu, todo mundo queria ir lá ver. Eu fui três vezes e me dava medo demais. Hoje nem dá, a Dow isolou tudo, tem segurança para todo lado”, diz o aposentado Anailton dos Santos, de 64 anos.

Como ele falou, atualmente não é possível visitar o local. A Dow controla o fenômeno geológico durante 24 horas, isolando o lugar com barreiras, câmeras e seguranças.

“Na primeira vez que eu fui, o vácuo do buraco fazia um barulho assim: ‘hauuuur’. Parecia que o buraco estava vivo. Eu corria, mas depois eu voltava novamente para ver o tamanho daquilo. Era do tamanho de um campo de futebol. Toda hora fazia aqueles estalos e barulhos. A ilha toda escutava. Depois de um tempo, parou”, lembra Anailton.

O tamanho de um campo de futebol não é exagero. Segundo a mais recente medição realizada pela Dow, o vazio de superfície tem as medidas de 115 m de comprimento, 50,5 m de largura e 24,3 m de profundidade. Para se ter ideia, os campos da Fonte Nova e do Barradão medem 105×68 m (não há profundidade).

Este crescimento se deu nos meses após a abertura da cratera, o que é natural, pois a parede formada ainda pode sofrer erosão. Com a queda de pedaços, a profundidade diminuiu. “Importante destacar que o monitoramento mostra que as medidas se mantiveram estáveis, considerando-se características deste fenômeno geológico, não havendo registro até a presente data de eventuais alterações fora dos padrões naturais e próprios do mesmo fenômeno”, avisa a Dow, em nota. Ainda segundo a empresa, o buraco não apresenta riscos à população.

O processo de controle é feito com microssensores que foram instalados para monitorar continuamente qualquer movimento ou possibilidade de novos eventos geológicos na região. Estes aparelhos cobrem toda a ilha de Matarandiba. Voos de drone fotografam o buraco, e dados de satélite também são utilizados.

Com o buraco relativamente estável, o medo está se transformando em sustentabilidade. O que era motivo de temor se tornou um desejo de ser mais um ponto turístico de uma região repleta de Mata Atlântica preservada, quedas d’água, lagoas e um manguezal. Sem contar as águas calmas da baía. Alguns moradores locais tentam iniciar uma conversa com a Dow Química para que se pense uma maneira de abrir o local para visitação ou, quem sabe, turismo de aventura.

“Nossa comunidade é um paraíso, uma imensidão de paz. A rotina só é afetada quando tem veranistas e visitantes que não respeitam a casa dos outros. Claro que sonhamos com novas maneiras de atrair um turismo sustentável. Seria uma trilha ecológica até o Lago Azul, com direito a rapel e tudo mais. Um roteiro de aventura, entende?”, detalha a presidente da Associação Comunitária de Matarandiba (Ascoma), Elizângela Lopes.

Lago Azul? Sim, é o nome do buraco batizado pela comunidade. Com o tempo, o acúmulo de chuva formou uma lagoa azulada, por conta do solo argiloso, dando um aspecto de paraíso natural.

Elizângela agora aguarda uma evolução na conversa com a Dow Química, dona do terreno onde está o buraco. “Antes de qualquer coisa, é preciso saber sobre a segurança do local e das pessoas que irão,  principalmente se não afetará o meio-ambiente”, completa.

A empresa prefere não se aprofundar sobre esta possibilidade, principalmente enquanto o buraco precisar de monitoramento permanente.  “Segurança é valor inegociável para a Dow. A vedação de acesso à área permanece desde a descoberta e controles restritos foram implementados”, afirma Greg Oliveira, diretor industrial da Dow.

É seguro abrir para visitação?

Afinal, é possível e seguro o buraco se tornar ponto turístico um dia? A resposta é: depende. Primeiro, é preciso entender o fenômeno que se sucedeu em Matarandiba, conhecido como sinkhole.

Pode ocorrer no mundo todo, da Sibéria à Ilha de Itaparica. Resumidamente, é um processo de afundamento do solo (uma erosão) que se desenvolve após um vazio subterrâneo tirar a sustentabilidade da “tampa”, fazendo com que se abra uma cratera, geralmente de forma circular, a depender do solo rochoso. Pode acontecer por questões naturais ou provocado por atividade humana, principalmente na exploração em subsolos.

Na Bahia, existe um exemplo de sinkhole aberto naturalmente: o Buraco do Possidônio, em Morro do Chapéu, no centro-norte do estado. Assim como em Matarandiba, o Possidônio também desabou o “teto”, como uma laje, mas há séculos. Provavelmente o acúmulo de água ou lençóis freáticos, misturado com um solo argiloso, provocou a cratera, que hoje é utilizada para a prática de rapel.

É seguro? É. Contudo, significa que nunca ocorrerá acidente em Morro do Chapéu? Não dá para ter 100% de certeza. Fenômenos geológicos, quando não monitorados, podem ocorrer de repente e sem aviso prévio, como foi o caso no Lago de Furnas, ponto turístico localizado em Capitólio (MG). O desabamento de blocos rochosos matou dez pessoas que passeavam pelo local, em janeiro deste ano.

O sinkhole de Matarandiba não foi aberto de forma natural. Onde surgiu a cratera era local de extração de salmoura, já desativado, pois o processo feito era com tecnologias mais antigas e melhores para o período. Para explicar como surgiu, primeiro é preciso saber como é extraído o produto, que fica a mais de um quilômetro abaixo do solo.

Resumidamente, é perfurado um buraco até onde abriga a salmoura e injetado água doce nele, que acaba se tornando água salgada. Graças à densidade, o sal sobe e acaba possibilitando a extração. Pense agora que, quanto mais se extrai, mas ficam espaços ocos lá embaixo. São cavernas subterrâneas. A água inserida vai provocando erosões com o tempo e retirando camadas das rochas que impediam que o teto caísse.

“Na época também cavavam poços próximos um do outro, criando colunas de terra que não sustentaram o peso do teto.  É tudo uma questão de engenharia. Na época em que os poços estavam ativos no local, este método era o mais seguro, como mostram estudos do período. Os poços não produzem mais, mas a água da chuva, ou subterrânea que ficou nesta zona oca, passou pelas estruturas e colunas daquele ponto específico, o que acabou ocorrendo o sinkhole. Por isso é tão importante respeitar o espaço dos furos e até onde é possível avançar nas camadas do solo. Quando este fenômeno não ocorre de forma natural, geralmente é devido às explorações subterrâneas”, explica o geólogo Valter Sobrinho, chefe do departamento de Geologia do Serviço Geológico do Brasil, empresa pública vinculada ao Ministério de Minas e Energia.

Valter teve um importante papel no fenômeno ocorrido em Matarandiba, pois foi um dos autores do relatório sobre o buraco. Segundo o geólogo, atualmente a Dow utiliza meios mais avançados e com menos risco de novos buracos. Ao contrário de antes, agora poços são abertos sem a necessidade de desmatamento e o espaço entre um buraco e outro respeita as novas regras para evitar este tipo de colapso. Em um único furo, é possível explorar em diversos pontos subterrâneos.

“Não há muito o que fazer a não ser monitorar, como tem sido feito”, diz Valter. Indagado sobre uma eventual abertura para visitação, ele opina: “É uma questão de negociação com a Dow, mas acho complicado por se tratar de uma área industrial, de exploração mesmo. Pela questão do risco, não vejo grandes problemas, por se tratar de uma área monitorada. Não é diferente dos riscos que outras áreas da natureza oferecem, como aquele caso do Capitólio, por exemplo. Olha, em Matarandiba tem muito mais coisas que poderiam ser exploradas naturalmente, seria uma boa ideia mesmo?”, pondera.


Na pequena vila com pouco mais de 900 habitantes, o buraco é parte do cotidiano. Vereador de Vera Cruz e morador de Matarandiba, Lico acompanha de perto o monitoramento e não descarta o sonho de ver o sinkhole se tornar um ponto turístico. “Toda última sexta-feira do mês a comunidade e a empresa se encontram. Recebemos novidades sobre o buraco, que se mostra muito seguro nos últimos anos. A relação da Dow com a população daqui é muito próxima, eles exploram o local desde a década de 70. É mentira dizer que não temos medo, faz parte. Mas todo local oferece algum tipo de risco, né? Na época, descobrimos que o solo que caiu parecia um queijo suíço embaixo. Mas, depois de tanto tempo de estabilidade, acho que podemos pensar em abrir o local para visitação. Mas creio que seja algo a médio e longo prazo”, comenta Lico, que também tem uma pousada no local. 

Já para quem frequentava o lugar onde surgiu o buraco, é melhor deixar tudo como está. Léo Brilha sempre caçava tatu na região e, embora negue, todo mundo na vila garante que ele foi o primeiro a ver. “Meses antes de cair, eu já sentia estalos no solo e as árvores balançavam do nada, como se tivessem sido sacudidas. Dava medo. Eu ouvi o estrondo, mas somente dias depois meu irmão viu o buraco. Foi procurar buraco de tatu, achou um buraco daquele tamanho. Olhe, não tenho medo, mas acho melhor deixar aquela zorra quieta”, resume Léo. Reis, o irmão dele, não foi localizado pela reportagem. 

O Ministério Público Federal chegou a abrir investigação sobre o episódio, mas o documento não foi encontrado no banco de consulta do órgão. Procuramos o MPF, mas não tivemos retorno até o fechamento da edição. A prefeitura de Vera Cruz afirma que não tem responsabilidade, por se tratar de área da União. O único laudo disponível para consulta foi feito em 2018, meses após a abertura do buraco. Doutor em geologia e professor da Ufba, o geólogo Marco Botelho, que estava elaborando estudos constantes do local, faleceu ano passado. Ninguém deu seguimento ao estudo, que está parado e inacessível.

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