Especialistas em geologia e climatologia explicam os fatores que tornam os deslizamentos inevitáveis e os desafios para o poder público proteger a população da região.
A Serra do Mar é um conjunto de mil quilômetros de um maciço de rochas que se estende de Santa Catarina ao Rio de Janeiro. Rochas que se formaram há bilhões de anos e são as mais antigas do estado.
Mas o maciço poderoso também tem suas fraquezas, que ficam claras nas imagens que mostram as cicatrizes deixadas pelos deslizamentos do último fim de semana – a tragédia provocada pela chuva teve 48 mortos e dezenas de desaparecidos até esta quarta-feira (22).
E este é um aspecto que acompanha a Serra do Mar desde que ela se formou.
Segundo Fábio Augusto Reis, professor de geologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp), é a combinação de três fatores que provoca tantos deslizamentos:
- A alta inclinação das encostas;
- A pouca profundidade do solo acima das rochas;
- O “paredão” provocado pelas rochas, que prendem as nuvens na região e provocam chuvas frequentes.
Essas aspectos, somados à multiplicação de eventos climáticos extremos, como uma chuva de 683 milímetros durante menos de 15 horas em uma região que registra média de 303 milímetros em um mês inteiro, torna a situação das encostas da Serra do Mar ainda mais complexa.
Entenda abaixo por que os deslizamentos no Litoral Norte de São Paulo são inevitáveis e podem se tornar cada vez mais intensos:
Solo com dois metros de profundidade
Por cima das rochas – que chegam a alcançar até 1.800 metros de altura em alguns pontos – há apenas uma camada muito fina de solo e vegetação, que tem a tendência natural a escorregar.
“Na Serra do Mar nós temos a floresta, formada por árvores de grande porte, também chamada de Mata Atlântica. Abaixo disso nós vamos ter da superfície até um, dois metros de profundidade em média”, explicou Fábio Augusto Reis, professor de geologia da Unesp.
O fato de o solo da Serra do Mar não ser tão profundo quanto no interior do estado, porque no litoral a rocha aflorou sobre a superfície, faz com que a água da chuva, ao se embrenhar no espaço livre na terra, não consiga descer muito, já que a rocha é impermeável.
Com isso, ela se acumula perto da superfície e, caso a chuva não pare, pode levar a uma supersaturação do solo, que acaba transformado de um estado sólido para um estado “plástico” e, depois, para o estado líquido, segundo o professor da Unesp.
Inclinação média de 30 graus
A terra nesse estado líquido passa então a sofrer com o efeito da gravidade, por causa do ângulo de seus morros.
“Muito está relacionado com a inclinação da encosta”, diz o professor. “A inclinação da encosta na Serra do Mar, nós estamos falando em inclinações acima de 30 graus. Acima de 17 graus, de 20 graus de inclinação a gente já começa a ter o processo de movimento gravitacional de massa, dentre eles o escorregamento.”
Outro processo que, segundo ele, é ainda mais intenso, é o chamado fluxo ou corrida de detritos.
De acordo com Reis, o material do solo, junto com árvores e até blocos rochosos, se depositam na base da encosta. Conforme a chuva vai ocorrendo, esse material pode receber mais água e virar um fluxo líquido, que vai em direção aos rios, passando por estradas, entrando nas ruas, derrubando casas até atingir uma parte mais plana, onde estão as praias, ou até atingir o mar.
“Por isso nós vimos vários locais, principalmente em Toque Toque, mesmo na Barra do Sahy, no Juquehy, os fluxos indo no meio da rua, porque são as áreas onde o fluxo vai encontrar”, diz ele, ressaltando que “esse fluxo de detritos é tão forte que pode levar blocos rochosos do tamanho de uma casa”.
‘Paredão’ que prende as nuvens
Mas o processo de liquefação do solo e, depois, do movimento gravitacional de massa, só ocorre se existe a água para iniciar toda essa transformação. “A chuva é o agente deflagrador do processo. Ou seja, ela que que induz o processo [de movimento] mais rapidamente, pela saturação do solo”, diz o professor.
O problema é que, como a Serra do Mar é composta de uma cadeira de rochas altas, ela acaba formando um “paredão” que impede a dissipação das nuvens.
Carregadas de água, elas acabam concentrando as chuvas justamente sobre as cidades litorâneas e os morros inclinados e com solo superficial. E o desmatamento para a ocupação irregular do solo torna tudo isso ainda mais perigoso.
O caso histórico de Cubatão
Na década de 80, a chuva ácida, provocada pela poluição do polo petroquímico de Cubatão, começou a devastar a Mata Atlântica que cobre as encostas, o que deixou marcas por toda a extensão do maciço.
A situação era tão dramática que o governo do estado começou a bombardear a Serra do Mar com sementes de árvores.
Além de iniciativas como essa e, principalmente, o controle da poluição no polo, ajudaram a recuperar a vegetação.
Eventos extremos são desafio atual
Mas a crise climática, que aquece o planeta e a temperatura da água do mar, traz novos desafios.
O climatologista Carlos Nobre explica que eventos climáticos extremos, como o deste fim de semana, serão registrados praticamente todos os anos.
“Teve um momento ali em São Sebastião que houve 120 milímetros em uma hora. Isso é um recorde de chuvas de uma hora. Então, tudo isso nós devemos nos preparar, porque não tem volta. As mudanças climáticas continuam, e elas vão só se acelerar”, disse Nobre.
Ele cita dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) que estima que 2 milhões de brasileiros vivam em mais de 40 mil áreas consideradas de altíssimo risco, por estarem perto de rios, riachos ou em encostas muito íngremes, e mais suscetíveis a desastres naturais.
“Temos que ter soluções que busquem, por exemplo, no curtíssimo prazo, instalar sirenes em todas essas áreas”, explicou ele. “E, para soluções definitivas, nós temos que remover milhões de brasileiros que vivem nessas áreas de altíssimo risco. Tem que criar a possibilidade de moradias seguras para milhões e milhões de brasileiros.”
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G1/ Foto: CREATIVE PRODUÇÕES/ Cristian Santos