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Comandante de ferry envolvido em batida não poderia ter pilotado a embarcação

Trabalhador é contratado para ferries menores, mas desvio de função, assédio e pressão por ‘manobras de risco’ são rotina, alegam funcionários.

Daqui a três meses, a Marinha do Brasil termina o inquérito administrativo sobre a colisão entre dois ferryboats, no Terminal de Bom Despacho, em Itaparica, há seis dias. Uma informação constará no documento: o comandante de um dos ferries, o Pinheiro, não poderia conduzir o equipamento – ele não é contratado para isso.
 
A batida entre as duas embarcações aconteceu no final da manhã da última segunda-feira 6), quando o ferryboat Pinheiro se preparava para atracar em Bom Despacho. O Maria Bethânia, por sua vez, acabara de sair da ilha rumo a Salvador. 

A Internacional Travessias Salvador (ITS), responsável por administrar o sistema, apontou “erro de aproximação na manobra do Pinheiro”. Trabalhadores do ferryboat rebatem a empresa e denunciam uma rotina que inclui pedidos por “manobras de risco” em navios “precários”, turnos “excessivos”, assédio moral e desvio de função.

Foi esse o caso a que foi submetido o comandante do Pinheiro envolvido no acidente: ele é contratado como contramestre, não mestre de cabotagem, título exigido para comandar aquele navio. O paulista até é habilitado pela Marinha do Brasil como mestre de cabotagem, mas foi admitido pela ITS para comandar dois ferries menores que o Pinheiro (Ana Nery e Ivete Sangalo).

A colisão entre as embarcações deve escancarar as condições de trabalho impostas aos marinheiros da travessia Salvador-Itaparica. Um dia depois do acidente, o Ministério Público do Trabalho (MPT) abriu inquérito para apurar como eles trabalham e se há segurança no serviço.

A investigação contemplará a agressão sofrida por funcionários no terminal de Salvador, no dia 30 de janeiro. Antes disso, 11 procedimentos foram abertos pelo MPT para apurar denúncias trabalhistas. Deles, quatro estão ativos, relacionados a queixas sobre segurança e saúde do trabalho, informou o órgão. 

Os riscos do desvio de função

Cada embarcação exige uma habilitação. Isso porque a arqueação bruta (o tamanho da embarcação) repercute no nível de dificuldade de manobras. Consequentemente, quanto maior uma embarcação, maiores são as exigências de formação. 

Entre Salvador e Itaparica, percorrem o mar os fast ferries (menores) e ferries convencionais (maiores). O ferry Pinheiro é um ferry convencional. Para comandar os “fast”, é necessária a habilitação de contramestre. Para guiar os convencionais, é preciso ser mestre de cabotagem, um nível acima.
 
A diferença salarial entre comandantes contramestres e mestres de cabotagem é de quase R$ 2 mil – o mestre de cabotagem ganha, em média, R$ 8 mil.

“Ele [o comandante do Pinheiro no dia do acidente] não era nem para estar naquele barco, mas já estava trabalhando há 15 dias nele. O cara é extremamente profissional e está bem abalado”, contou um colega. 

Quando o desvio de função é verificado em situações de acidente, há duas possibilidades principais de punição: a administrativa e a criminal. 

Se um trabalhador cumpre, no mar, funções para as quais não tem treinamento, configura-se falta grave – e em caso de acidente, sobretudo com vítimas, podem ser punidos o trabalhador e a empresa. Já se ele é habilitado, mas não é contratado para a função exigida (como ocorreu no Pinheiro), configura-se infração administrativa da empresa.
 
A mais grave modalidade do desvio de função no sistema ferryboat é  “colocar gente sem a habilitação devida ou contrato de trabalho adequado para ocupar os cargos de chefe de máquina ou comandante”, resumiu um comandante, sob anonimato. 

“É tipo assim: você que sabe dirigir carro, sabe dirigir uma caminhonete?”, comparou. 

Há quase um ano, na noite de 16 de fevereiro de 2022, dois ferries também colidiram, dessa vez próximo ao terminal de São Joaquim. Nove meses depois, em 9 de novembro do ano passado, uma falha no sistema de regulagem deixou o ferry Maria Bethânia coberto por fumaça – “a situação não apresenta qualquer perigo para a embarcação e para os usuários”, afirmou a Internacional Travessias, por meio de nota, naquela noite.

A rotina diária

Enquanto se preparava para a primeira travessia do dia, F. afirmou já ter visto todo tipo de substituição ser feita nos ferries. Há relatos até de marinheiros coagidos a limpar a embarcação depois do expediente.

Esse tipo de pressão cresceu ao ritmo da diminuição das equipes de limpeza à bordo – as demissões quase eliminaram os agentes de serviços gerais, o que é visível pelas baratas e sujeira de embarcações.  

“É aquela situação que o chefe liga, e você sabe que se se negar a fazer, você já sabe [o que pode acontecer]”, disse ele.

O desvio de função é mais frequente em feriados, quando o número de viagens cresce de 38 para 70. Nesses períodos, os turnos sem descanso são consequência.

 “Comandantes dobram turnos de 48 horas sem descanso, manobram com sono, acordados à base de energético”, afirmou um deles.

O assédio moral incluiria o pedido por “manobras de risco”. Normalmente, a saída do ferry de um terminal é acompanhada da chegada de outro. Um exemplo de manobra de risco seria não esperar tempo o suficiente para começar a atracar uma embarcação mesmo diante da proximidade.

Isso aconteceria, afirmou um ex-comandante, para “tirar o atraso nas atrações, pois os ferries já são lentos” – uma travessia dura, em média 1h20. “Essa briga muitas vezes é com o comandante. Mas a gente sabe que um ‘não’ pode gerar demissões”, contou um deles. 

É o déficit de funcionários que parece estar por trás, justamente, das irregularidades trabalhistas. Desde 2014, quando a Internacional Travessias assumiu a gestão do ferryboat por meio de concessão firmada com a Agerba, o Sindicato dos Trabalhadores Marítimos da Bahia estima a redução de funcionários à metade – hoje, são, 260 trabalhadores nas funções de cabotagem.

A Internacional Travessias não comentou, até o fechamento da reportagem, as queixas dos funcionários – o espaço segue aberto.

Os riscos imediatos da navegação

No ramo da navegação, o risco mais imediato de delegar a profissionais funções para as quais não são habilitados ou submetê-los a jornadas excessivas de trabalho é o acidente marítimo. Em Salvador, somada a esses problemas, está a precariedade das embarcações. 
 
Dos sete ferries em operação, dois são da década de 80 e um de 1974. Dois deles, Zumbi dos Palmares e Dorival Caymmi, chegaram da Grécia com ferrugem aparente, em 2014. O governo jurava que eram embarcações “novinhas”. A Agerba justificou não haver “disponibilidade no mercado de embarcações ‘zero'”. 
 
Já a Internacional Travessias diz que as embarcações passam por vistorias e manutenções e que investe anualmente até R$ 5 milhões por ferry.

“Os motores estão subdimensionados. O Ana Nery foi projetado com quatro motores, mas hoje só existem dois. O Ivete Sangalo também”, contrapôs um marinheiro. 

O maior perigo, no mar, é o naufrágio. “O que está no mar pode afundar. Toda medida de segurança é para salvaguardar a carga viva, que são as pessoas”, afirmou um comandante com uma década de experiência. As normas de segurança enrijeceram depois do naufrágio do Titanic, em 1912.

Mas há outras possibilidades mais próximas. Um comandante exemplifica: “imagine que num tempo ruim, o navio toma um gole de onda, e um carro corre para o lado, e a pessoa fica presa. Imagine se o navio afunda. Ou se o ferry bater com muita violência, pode haver uma queda da escada, onde há pessoas. Existe o risco de ‘incêndio’. São ‘N’ riscos”.  
 
A reportagem questionou a Capitania dos Portos quanto as condições do trabalho de marinheiros e das embarcações. A Capitania respondeu promover “rotineiramente” fiscalizações sobre o cumprimento das normas marítimas. 
 
O Ministério Público da Bahia acompanha a situação para averiguar o cumprimento do contrato entre a ITS e a Agerba. A promotora Rita Tourinho fez uma avaliação: ambas descumpriram responsabilidades.
 
A primeira pela “má prestação de serviço”. O segundo por não fiscalizar, segundo a procuradora, as embarcações e a prestação de serviço.
 
A Agerba respondeu não ser responsável pelas funções dos funcionários e relatou fiscalizações diárias que teriam resultado em “mais de 70 autos de infração entre dezembro de 2022 e janeiro”. 
 
O CORREIO teve acesso ao contrato firmado entre Internacional Travessias e Agerba no dia 15 de julho de 2014. Baseado nele, Ihering Guedes, professor de Economia do Transporte da Universidade Federal da Bahia (Ufba), apontou um cenário complexo. 

“A empresa pode recorrer à ‘responsabilidade sem culpa’. Por exemplo, quando você vai dirigindo seu automóvel e acidenta uma pessoa, você não é processado criminalmente, pois o risco é inerente”. 

Para que essa hipótese seja válida, a Agerba não pode ser eximida de responsabilidades, pois é quem “tem a incumbência legal no estabelecimento de fiscalizar um protocolo de atividades a ser cumpridas para que que possa recorrer à responsabilidade sem culpa”.

Ferryboat é sistema moderno no mundo

O sucateamento do ferryboat na Bahia pode sugerir a falência do sistema, mas, mundialmente, a tendência é contrária. “Nós é que estamos ultrapassados. Mas o ferry é um setor de ponta”, explicou o professor Ihering Guedes. Em janeiro de 2022, um ferryboat realizou a primeira viagem autônoma, no Japão.

 É como se essas embarcações servissem de teste para indústria naval. Isso acontece porque os ferries operam em distâncias de no máximo 100 quilômetros, o que ajuda no controle de variáveis como acidentes. 
 
A imagem de obsolescência do ferryboat reflete, em Salvador, décadas de políticas governamentais e gestões desalinhadas à realidade mundial. 
 
Até o ferry surgir como opção de transporte entre Salvador e Itaparica, em 1972, as únicas possibilidades de travessia eram as “lanchinhas” ou a ponte do Funil. Em 5 de dezembro daquele ano, os ferries Agenor Gordilho e Juracy Magalhães entraram em operação para promover o turismo na Baía – em 2020, o Agenor foi afundado para servir como ponto de mergulho; o Juracy seguirá esse caminho.

O Governo da Bahia assumiu o ferry como um modal público. “Mas é um modelo caro para ser operado dentro das tarifas do transporte público”, acrescentou Guedes. Nos anos 90, as consequências da falta de investimento se acentuaram. Os ferries eram comprados já de segunda mão, as embarcações envelheciam.

 A iniciativa privada foi convocada em 2006 para tocar o negócio. Nos seis anos seguintes, a baiana TWB assumiu o direito de explorar o serviço marítimo. Acusada de irregularidades, em 2012, a TWB perdeu o direito de administrar o ferry e foi sucedida pela Internacional Travessias. 
 
O que estava previsto para durar seis meses se estendeu a partir de novos contratos firmados e, em 2014, um novo acordo firma a companhia como a administradora até 2039. Nada impede, no entanto, que o contrato seja interrompido – como aconteceu no passado.

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Correio/Foto: Marina Silva/CORREIO

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