Bolsonaro desconsiderou 1º da lista em 40% de nomeações para reitor de universidades
O MEC e a presidência não se manifestaram.
Rompendo uma tradição que vigorava desde o final dos anos 1990, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) já nomeou 19 reitores de universidades federais que não foram os mais votados nas eleições internas das instituições.
Isso representa mais de um quarto das 69 universidades e 40% das nomeações feitas por Bolsonaro. Até o final do seu mandato, o presidente ainda poderá escolher outros 13 reitores.
Por lei, as universidades federais definem uma lista tríplice, e cabe ao presidente da República selecionar um dos três nomes. Nas últimas duas décadas, prevaleceu o respeito à vontade majoritária dessas instituições. A última vez em que o 1º colocado havia sido desconsiderado foi em 1998, no governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB).
Bolsonaro, porém, fez da exceção uma prática recorrente. Desde o início de sua gestão, ele tem desconsiderado os primeiros colocados para privilegiar o alinhamento político dos reitores -inclusive com duas escolhas de dirigentes temporários, de fora da lista tríplice. O presidente e aliados consideram que as universidades federais são aparelhadas pela esquerda.
A quantidade de vezes em que Bolsonaro desconsiderou o mais votado e as motivações políticas e ideológicas por trás dessas escolhas têm levado docentes a apontar um ataque ao princípio constitucional da autonomia universitária.
Na UFRGS (Federal do Rio Grande do Sul), por exemplo, a escolha de Carlos Bulhões, o 3º colocado, foi anunciada com antecedência pelo deputado bolsonarista Bibo Nunes (PSL-RS), explicitando a interferência política.
Bulhões passou por cima do Conselho Universitário para fazer uma alteração administrativa que fundiu pró-reitorias e reduziu equipes de áreas como as de ensino a distância e internacionalização para criar uma pró-reitoria chamada de Inovação.
Há análise formal no Conselho sobre eventual denúncia ao MEC e ao Ministério Público por causa de atos unilaterais. “Há uma tensão constante. O governo federal não consegue entender o papel educacional que tem a democracia dentro de uma universidade”, diz a professora Marcia Barbosa, que compõe o colegiado.
“Quando um reitor é eleito não ganha apenas um currículo mas um projeto de gestão é reconhecido pela universidade. Não há justificativa para não termos sido nomeados”, diz Rui Oppermann, que venceu a eleição na UFRGS e foi preterido.
Em nota, a UFRGS diz que a nomeação foi legal. O texto ressalta que as alterações administrativas são de “prerrogativa legal do gestor máximo”.
Bolsonaro fez 31 nomeações dos mais bem votados. Nesse grupo estão instituições como as federais do Pará e Sergipe, que, antes da efetivação dos eleitos, passaram por imposição de dirigentes temporários.
A UFGD (de Grande Dourados) está no segundo reitor temporário desde 2019. O Ministério Público questionou a forma de composição da lista enviada ao MEC e o tema está na Justiça.
A primeira temporária, Mirlene Damázio, teve gestão cercada de relatos de perseguição contra adversários. Foram nove processos administrativos.
Alunos e professores, entre eles o coordenador do curso de direito, Thiago Botelho, tiveram seus nomes levados à Polícia Federal após ato realizado em reunião do Conselho.
“Há um caos em decorrência da intervenção”, diz ele. “A UFGD está sendo gerida por alguém de fora da lista, isso fere toda a legislação.”
Em fevereiro, o governo a destituiu e nomeou outro pró-tempore, Lino Sanabria. A UFGD afirmou que os processos administrativos “devem ser abertos com base em notícias, representações e denúncias” e que tudo segue as normas.
A disposição do governo em interferir aparece também nos institutos federais, cuja legislação prevê o envio ao governo apenas do nome vencedor. Foram necessárias ações judiciais para superar intervenções em três instituições.
O ex-ministro Abraham Weintraub disse, em maio de 2019, que analisava a configuração política para determinar nomeações. As federais eram descritas por ele como locais de balbúrdia, uso de drogas e desperdício de dinheiro.
O governo tentou alterar o modelo de nomeação ao editar duas medidas provisórias. Uma caducou e outra foi devolvida pelo Congresso.
A última nomeação que ignorou o 1º colocado foi em 13 de julho, na Federal Rural da Amazônia, sob a gestão do ministro Milton Ribeiro.
Para Nilton Brandão, do Proifes (federação de sindicatos de instituições federais), o grupo de reitores alinhado ao governo enfraquece demandas do setor, como os de reforço do orçamento -esvaziado nos últimos anos.
Terceira colocada na eleição, Ludmilla de Oliveira foi nomeada em maio para comandar a Ufersa (Federal Rural do Semi-Árido) e integra o grupo próximo a Bolsonaro.
“A tradição não é a lei”, disse. À reportagem, ela preferiu não comentar ataques feitos à universidade e as motivações ideológicas nas nomeações, mas elogiou o governo.
“O governo tem feito um esforço enorme, mesmo em meio à pandemia, para recompor o orçamento. As universidades estão perdendo tempo com política e esquecendo de fazer projetos. Para quem faz projeto, o dinheiro chega.”
No STF (Supremo Tribunal Federal) tramitam duas ações que questionam se a postura do governo fere a autonomia. Uma delas, proposta pelo PV, entrou na pauta mês passado, mas foi adiada.
O relator, Edson Fachin, argumentou em seu voto que nomeações não podem ser usadas em “agendas políticas”. A postura sem precedentes de Bolsonaro seria motivo para que as regras fossem revisitadas, segundo Fachin.
“Uma vez que essa prática tenha sido recentemente alterada, e que a nomeação dos nomes indicados nas cabeças das listas tríplices tenha sido sistematicamente preterida, forma-se dúvida legítima quanto à compatibilidade das normas vergastadas com o ordenamento constitucional”, diz o voto.
O ministro Alexandre de Moraes divergiu e argumentou que a lei que rege as nomeações -de meados da década de 1990- deixa clara a prerrogativa do presidente. A Corte não incluiu o tema na pauta deste ano.
Professores preteridos se organizaram e, junto com o Proifes, que participa da ação, recorreram ao ex-ministro do STF Carlos Ayres Britto para tentar influenciar a corte.
A manifestação recorre ao chamado costume constitucional. “Existe o texto da lei, que fala da lista tríplice, mas existe a norma, a concretização do texto, que dá vida a esse texto. E a norma que sempre regeu é pela nomeação do 1º”, diz o advogado Saul Tourinho Leal, sócio do escritório Ayres Britto.
A professora da USP Nina Ranieri, estudiosa do tema, diz que a realidade das federais sempre foi de uma autonomia limitada. Para ela, a tendência é de que o Supremo reforce a discricionariedade do presidente.
“Havia acordo tácito de indicar primeiro para garantir governabilidade, mas legalmente a escolha pode recair em qualquer um dos três”, diz. “A nomeação de pró-tempore é totalmente ilegal.”
Consultada, a Andifes afirmou que respeita a lei.
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Bahia Notícias/Foto: Pedro Ladeira / Folhapress