Obras de educação aprovadas sob Bolsonaro superam 14 vezes o orçado, diz TCU
As conclusões estão em auditoria da área técnica do TCU (Tribunal de Contas da União) que tramita sob sigilo e foi obtida pela Folha.
Para atender aliados do governo Jair Bolsonaro (PL), o FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação) ignorou critérios técnicos e fez milhares de empenhos fracionados que representam R$ 8,8 bilhões para obras de educação, valor 14 vezes superior ao que estava no orçamento para essa finalidade em 2021.
As conclusões estão em auditoria da área técnica do TCU (Tribunal de Contas da União) que tramita sob sigilo e foi obtida pela Folha. O órgão vê crimes e pede que o caso seja encaminhado à Polícia Federal e ao MPF (Ministério Público Federal), o que deve ser decidido em plenário da corte de contas.
“É razoável afirmar que era possível aos responsáveis ter consciência da ilicitude dos atos que praticaram”, diz o documento elaborado pela Secretaria-Geral de Controle Externo do TCU.
A auditoria compõe processo que apura irregularidades em transferências de recursos educacionais, incluindo a atuação do centrão no FNDE e a negociação com pastores próximos a Bolsonaro sem cargo no governo. O fundo é ligado ao MEC (Ministério da Educação).
Os possíveis crimes citados pelo tribunal são de afronta à lei de responsabilidade fiscal, aos princípios da moralidade e impessoalidade e às exigências da Lei de Diretrizes Orçamentárias. A própria Constituição veda “a realização de despesas ou a assunção de obrigações diretas que excedam os créditos orçamentários ou adicionais”, ressalta o documento.
“Além de já ter se comprometido com as despesas dos termos definitivos, caso os termos com cláusula suspensiva sejam aprovados tecnicamente pela entidade, serão convertidos em uma obrigação financeira correspondente a quatorze vezes o valor da dotação autorizada para o exercício de 2021”, diz o texto.
O FNDE firmou, entre 2020 e maio do ano passado, 3.356 termos de compromisso (entre o órgão e prefeituras) relacionados a obras. Ao somar os valores das operações aprovadas a partir de empenhos menores, chega-se aos R$ 8,8 bilhões.
A maioria dos termos, 3.047, foi firmada em 2021. As dotações autorizadas para obras e reformas, no entanto, somavam apenas R$ 506,1 milhões.
A Folha mostrou em março de 2022 que o FNDE virou uma espécie de balcão político sob a gestão ex-ministro Milton Ribeiro e sob o comando do centrão no órgão. Para atender aos pedidos de políticos e lobistas, o fundo passou a fracionar empenhos (que reservam o dinheiro de obras) em pequenas quantias, na maioria das vezes de R$ 30 mil.
Assim, aliados do governo em Brasília lucravam politicamente com o anúncio de que conseguiam verba para suas bases eleitorais, enquanto prefeitos exaltavam a boa relação com o governo federal como exemplo de sucesso da gestão local.
Tanto as indicações dos pastores quanto as de políticos se valeram dos empenhos fracionados. O TCU identificou casos em que houve liberações de empenhos após reuniões com Milton Ribeiro intermediadas pelos pastores Gilmar Santos e Arilton Moura —pivôs do escândalo que resultou na demissão do ex-ministro de Bolsonaro.
Duas cidades do Maranhão são citadas. Com relação à cidade de Centro Novo (MA), o ex-presidente do FNDE Marcelo Lopes da Ponte movimentou pessoalmente o sistema do órgão para aprovação de termo de compromisso referente a obra no município. Isso ocorreu no mesmo dia em que houve reunião no MEC com a presença de Milton Ribeiro e o prefeito de Centro Novo, Junior Garimpeiro (PP).
Ponte presidiu o FNDE por indicação do centrão. Antes, ele foi chefe de gabinete de Ciro Nogueira (PP-PI), ministro da Casa Civil de Bolsonaro. Houve sob a sua gestão a explosão de empenhos realizados por indicação política.
A auditoria trata ainda do trabalho da Diretoria de Gestão, Articulação e Projetos Educacionais, comandada por Gabriel Vilar, que também chegou ao posto por influência do centrão.
No caso de Bom Lugar (MA), um dos diretores do órgão movimentou o processo para autorizar o empenho no dia seguinte de reunião da gestora da cidade com Milton Ribeiro e os pastores, no próprio MEC, ocorrida em 16 de fevereiro de 2022. O empenho foi efetivado 16 dias depois.
“A atuação do Diretor [Vilar] foi a única que precedeu a liberação do empenho, não havendo qualquer participação de agente técnico do FNDE no procedimento de aprovação”, diz o TCU.
“Apesar de não ter sido possível verificar uma relação direta entre as reuniões realizadas no MEC e no FNDE das quais se teve conhecimento e a liberação de empenhos e a execução de pagamentos para municípios que participaram desses encontros”, diz o documento do TCU, “constatou-se a existência de ambiente propício no FNDE para a ocorrência de direcionamento de recursos a entes federados sem observância ao princípio da impessoalidade e sem o atendimento a critérios técnicos preestabelecidos”.
A Folha procurou Ponte e Villar, mas ambos não responderam. As prefeituras de Centro Novo e Bom Lugar também não se manifestaram.
O ex-ministro da Educação Milton Ribeiro foi demitido uma semana depois de a Folha revelar áudio em que ele dizia priorizar demandas de um dos pastores a pedido de Bolsonaro. Ele chegou a ser preso, mas foi solto no dia seguinte.
Investigação criminal já está em curso contra Ribeiro, os pastores e outros envolvidos no esquema.
Os pastores pediam dinheiro em troca de liberações de obras do MEC, de acordo com as denúncias. Até barra de ouro foi solicitada para um gestor.
“Já solicitamos aqui detalhamento do que são essas obras, e se elas se alinham à política do órgão”, disse à Folha a nova presidente do FNDE, Fernanda Pacobahyba. Segundo ela, o FNDE manterá prioridade de atender os municípios com processos regulares, “salvo se não tiver interesse público”.
O FNDE informou que está alinhando com o MEC e a Casa Civil do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para levantar os dados de obras, empenhos e critérios técnicos “para que sejam tomadas decisões”. O órgão disse, em nota, que aguarda as recomendações e determinações finais do TCU.
Os auditores do TCU apontaram a ausência de critérios técnicos para a liberação de recursos. A Folha revelou em setembro conclusão da área técnica da CGU (Controladoria-Geral da União) de que o governo Bolsonaro ignorou sistematicamente critérios técnicos na transferência de verbas da educação, potencializando “acordos escusos”.
As liberações desse tipo de recurso do FNDE devem seguir as regras do PAR (Plano de Ações Articuladas), que prevê o envio de informações relacionadas às demandas dos municípios. O órgão ignorou atendimento a um ranking de municípios, que deveria orientar a priorização para empenhos, e liberou obras a partir de emails das lideranças.
O TCU também afirma que o fracionamento dos empenhos não só pode ser considerado ato de improbidade, como é prejudicial para a política econômica do país.
“Considerando que não há garantia de disponibilidade orçamentária e financeira em exercícios vindouros para finalização dessas obras, tal prática embute elevado risco fiscal para o equilíbrio das contas públicas”, diz a auditoria.
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